“Mas um samaritano, que ia de viagem, chegou ao pé dele e, vendo-o,
moveu-se de íntima compaixão; e, aproximando-se, atou-lhe as feridas,
deitando-lhes azeite e vinho; e, pondo-o sobre a sua cavalgadura, levou-o para
uma estalagem, e cuidou dele” Lucas
10:33,34
Uma das grandes denúncias contra
a religião foca no seu poder de produzir pessoas alienadas. Mas o que é um
alienado? O alienado é o sujeito que sem perceber transfere o domínio de si a
outros e abre mão da razão, da capacidade de questionamento, de julgamento. De
forma mais específica, a alienação religiosa transforma os sujeitos, em
sujeitos improdutivos e desvinculados da realidade que o rodeia; focando apenas
no transcendente, na fé abstrata, no “divino” que exige exclusividade,
roubando-lhe o privilégio de envolver-se com os desafios do aqui e agora, de
tocar pessoas com graça e socorrê-las em amor; porque tudo o que importa é o
“mundo espiritual”. De forma geral, essa denúncia contra a religião tem
respaldo na vida prática, pois todos os dias o que se pode perceber é que quanto
mais religiosa uma pessoa se torna, menos com um humano ela se parece, pois o
seu olhar destina-se apenas a “deus” e em um movimento contrário, recusa-se a
ver e perceber pessoas. Na história das religiões, pode-se notar que sempre
existiu uma forte tendência à experimentação de uma espiritualidade de “alma”,
que privilegia as coisas da “alma”, portanto, as coisas abstratas,
transcendentes, subjetivas. Mas na mesma história das religiões, de forma
geral, a “espiritualidade do corpo” foi negada. Mas o que diz Cristo? Que
espiritualidade o Senhor dos senhores propõe? Para começar a responder, é bom
que se afirme que Cristo nunca se propôs a fundar uma nova religião, ou um novo
conjunto de dogmas e nunca defendeu uma fé alienante, que tornassem pessoas
cegas quanto aos gritos de socorro da humanidade. Pelo contrário, Cristo nos
propõe um estilo de vida, orientado por uma “espiritualidade de corpo e alma”,
em que o transcendente e as coisas imanentes, visíveis, concretas encontrassem
equilíbrio e harmonia. Por definição, Deus é Espírito (João 4.24), mas Ele se
fez carne e habitou entre nós e vimos a sua glória (João 1.14). Foi com o corpo
que Cristo revelou-se como “Emanuel” ou “Deus conosco”; foi com o corpo que
Cristo foi ao encontro de pessoas enfermas, possessas, desesperançadas,
enlutadas; foi com o corpo que Cristo revelou seu grande amor ao mundo,
morrendo na cruz do calvário. Não obstante a essa realidade, Cristo também
viveu, como homem, uma fé transcendente, sobrenatural. Fez isso quando deixava
a multidão para buscar a face do Pai; quando deu ordens ao mar e ao vento,
quando discernia o coração humano etc. A espiritualidade de Cristo é a
conjugação perfeita entre corpo e alma. Negar o papel do corpo na fé cristã é
abraçar a visão mais alienada do cristianismo, mas negar a alma é tornar a fé
um elemento concreto e passivo de racionalização, e isto a fé não é. O que
Cristo então nos propõe? Certamente uma fé de corpo e alma. A parábola do bom
samaritano ilustra bem o que estou dizendo. A história conta que um homem foi
atacado por assaltantes, e depois de ter todos os seus bens roubados, sofreu
tamanha violência que caiu ao chão quase morto. No caminho passaram um
sacerdote e um levita, os homens da fé, os religiosos que falavam em nome de
“deus”, mas estavam comprometidos demais com seus afazeres no templo, no
exercício de seus devidos ofícios “espirituais” ou “ofícios da alma” que foram
incapazes de parar e socorrer o homem ao chão. Que fé é esta que me põe em
contato com Deus, mas me distancia das pessoas e seus gritos de socorro? Que fé
é esta que abre meus olhos para ver Deus e me torna cego para ver o meu
próximo? Eu diria que esta fé fundamenta-se numa espiritualidade de “alma” em
que apenas o transcendente me importa e que leva o corpo dos “homens de fé”
para longe da prática do amor. A parábola conta que apenas um homem parou e
socorreu e este era samaritano, uma “raça” tida como menos espiritual pelos
judeus e não merecedoras das dádivas divinas. Curiosamente, foi exatamente este
samaritano que soube harmoniosamente manifestar uma fé equilibrada, de “corpo e
alma”. Não faz sentido um cristianismo que aliena as pessoas em templos,
tornando-as enclausuradas e consequentemente improdutivas no Reino de Deus. A
verdadeira espiritualidade cristã, nos leva ao nosso quarto, nos faz dobrar
nossos joelhos em oração e buscar o Pai que vê em secreto; mas também nos faz
levantar desse mesmo quarto e dizer para o Pai: “Eis-me aqui, pode me usar”,
pois meu coração é teu, assim como meu corpo está para o teu serviço, pois sou
templo do Teu Espírito. A verdadeira espiritualidade cristã, não aliena, mas
nos põe em contato com o nosso próximo e nos permite revelar por meio de ações,
graça e amor divinos. A verdadeira espiritualidade nos leva a fechar os olhos
pra ver Deus, mas também me faz abrir os olhos pra ver o que Deus quer realizar
nas vidas que me cercam, através de mim. Nossos olhos, mãos, pés, coração,
enfim, nossos corpos são instrumentos de Deus na terra. É usando o nosso corpo,
que o Senhor vai socorrer pessoas, abraçá-las, ampará-las, ensiná-las a
verdade, consolá-las, corrigi-las etc. Qual é a sua espiritualidade? Se
pudermos pensar em uma espiritualidade ideal, esta certamente será de “corpo e
alma”. Como a Bíblia nos ensina em Tiago 1.27, a religião pura para com Deus
envolve socorrer pessoas, sejam estas, viúvas, órfãos ou qualquer que necessite
de socorro. Como templos do Espírito Santo, fazemos missões intercedendo, mas
como crerão se não há quem pregue, é preciso também ir; precisamos interceder
pelos famintos de pão, mas o pão precisa chegar a quem tem fome; precisamos
interceder em oração por crianças que sofrem violência dentre de casa, mas é preciso
abrir a boca e denunciar, é preciso prestar socorro, amparar. O Reino de Deus
veio trazer mais que uma boa notícia, veio trazer vida na vida. “Porque a ardente expectação da criatura
espera a manifestação dos filhos de Deus.” Romanos 8:19
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